O coronavírus identificado na China em dezembro já chegou a outros 58 países — e esse número vem crescendo dia a dia, assim como o total de pessoas infectadas.
O Sars-CoV-2, como é chamado oficialmente o novo vírus, faz parte de uma família conhecida pelo menos desde meados dos anos 1960 e que circula em animais, especialmente em morcegos. Mas estes vírus têm uma grande capacidade de sofrer mutações e produzir novas variedades que infectam outras espécies, entre elas, seres humanos.
Um novo vírus como este é perigoso não apenas por não termos medicamentos ou vacinas para nos proteger, mas também porque nossas defesas naturais não estão preparadas para combatê-lo.
"Como não temos uma proteção natural, todas as pessoas estão suscetíveis a serem infectadas, e esse é um dos motivos pelos quais ele tem maior propensão de se espalhar", diz o infectologista Estevão Portela, vice-diretor de serviços clínicos do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas.
Essas defesas ficam a cargo do sistema imunológico, um conjunto complexo de células, tecidos, órgãos e moléculas que cumprem funções específicas em uma resposta coordenada para neutralizar vírus, bactérias, fungos e parasitas — antes que sejam fatais.
Diante de uma nova ameaça, o corpo tem de partir do zero e construir as defesas necessárias. Mas, no caso de um vírus, este processo costuma ser mais demorado do que a velocidade com que este tipo de microrganismo se multiplica e infecta células.
"É uma corrida, em que o adversário avança mais rápido do que o sistema imunológico é capaz de desenvolver mecanismos de ação para combatê-lo", afirma o imunologista Renato Astray, pesquisador do Instituto Butantan.
Isso não significa, no entanto, que a batalha esteja perdida. O sistema imunológico encontra com o tempo formas de acabar com a ameaça, como vem ocorrendo nesta epidemia de coronavírus.
Mesmo sem um tratamento específico contra ele, sua capacidade de matar um paciente é baixa. Até o último domingo (1/3), segundo o boletim mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS), tinham sido registradas cerca de 2,9 mil mortes entre mais de 87 mil infectados.
Os cálculos da taxa de mortalidade são complexos, principalmente em uma doença nova que continua avançando. Nesta reportagem, a BBC News Brasil explica como os cálculos são realizados.
Mais de 77 mil das pessoas afetadas já se recuperaram — o que significa que médicos conseguiram controlar os sintomas da doença causada por este vírus, a covid-19, por tempo suficiente até o próprio corpo conseguir elimina-lo.
Mas como se dá este processo? E há formas de fortalecer nosso sistema imunológico e reduzir as chances de ficarmos doentes?
Como funciona o sistema imunológico
O corpo tem barreiras para impedir a entrada de patógenos, como são chamados os microrganismos que afetam nossa saúde.
Elas podem ser mecânicas, como a pele, microbiológicas — por exemplo, a flora de bactérias do intestino —, ou químicas, como as enzimas presentes na saliva ou o suco gástrico do estômago.
Se um corpo estranho consegue superar estas barreiras, cabe ao sistema imunológico nos proteger.
Todas as pessoas nascem com defesas naturais contra invasores. Esta é a chamada resposta imunológica inata, que é acionada automaticamente quando células detectam que foram infectadas e enviam sinais químicos para avisar que o corpo está sob ataque.
Isso faz com que outras células acionem mecanismos para se tornarem menos suscetíveis à infecção e ativa o sistema imunológico, que vai pôr em ação células específicas para combater o invasor.
Estas células são fabricadas continuamente pela medula óssea, a partir de células-tronco, que estão em um estágio inicial de desenvolvimento e tem o potencial de se transformar, em um processo de diferenciação, para cumprir funções específicas.
Desta forma, as células-tronco se tornam leucócitos — ou glóbulos brancos —, que atuam em nosso sistema imunológico. Uma elevação na quantidade de leucócitos no exame de sangue é indício de uma infecção. Se estiver abaixo do normal, o sistema imunológico está enfraquecido.
Os neutrófilos são o tipo de leucócito mais numeroso e atuam como a primeira linha de defesa do organismo. Eles envolvem e eliminam o invasor por meio da fagocitose, produzindo enzimas digestivas que destroem o patógeno.
Também liberam sinais químicos que recrutam mais células para atacar a ameaça. Isso gera uma inflamação na região onde está o invasor. Esta área é irrigada com sangue, que traz consigo mais leucócitos para auxiliar no combate.
Outro tipo de glóbulo branco, o linfócito conhecido como natural killer (assassino natural, em inglês), age principalmente contra tumores e vírus. Ele libera grânulos de proteína ao redor do alvo que fazem o patógeno se autodestruir.
Um terceiro tipo de leucócito, o macrófago, também atua neste estágio fagocitando invasores, mas cumpre outra função importante no próximo estágio da resposta imune.
A resposta imune adquirida
Quando um invasor é agressivo, resistente ou está presente em maior quantidade, isso exige outro tipo de reação do organismo.
A resposta imune adquirida é desenvolvida pelo corpo após entrar em contato com um patógeno. Ela envolve a ação dos linfócitos, células especializadas capazes de combater microrganismos e de nos proteger da mesma ameaça por mais tempo.
Os linfócitos ficam armazenados em órgãos como os linfonodos e o baço, à espera de sinais de que devem entrar em ação.
Um dos principais alertas é dado pelos macrófagos, que capturam um microrganismo ou parte dele e o transporta até os linfócitos, dando início à resposta imune adquirida. "Os macrófagos atuam como uma ponte entre as duas respostas imunes", explica Astray.
Os linfócitos começam então a produzir milhões de cópias de si mesmos e reforçam o sistema imunológico ao gerar anticorpos, proteínas capazes de neutralizar um patógeno. Os anticorpos têm a capacidade de reconhecer e se unir ao invasor, impedindo que ele infecte novas células e se reproduza.
Os linfócitos também marcam alvos para neutrófilos, macrófagos e natural killers. "Os linfócitos são como maestros do sistema imunológico, ao fazer com que as células imunes se aglutinem em torno de uma ameaça", diz Portela.
Ao final deste processo, a maioria dos linfócitos é destruída, mas alguns se diferenciam e permanecem em nosso corpo por vários anos, formando uma memória imunológica que tornará mais ágil o combate ao patógeno se ele nos infectar novamente.
As células imunes se multiplicam mais rapidamente ao detectar a mesma ameaça, o que acaba com aquela desvantagem do sistema imunológico na corrida inicial contra um invasor após a infecção. "Isso nos impede de ficar doentes ou faz com que os sintomas sejam mais leves", afirma Astray.
Por este motivo, não contraímos mais de uma vez algumas doenças, como catapora, caxumba, rubéola ou sarampo. Mas isso não impede que tenhamos novas gripes, por exemplo, porque o vírus que a causa, o influenza, sofre mutações facilmente, o que torna a memória imunológica inútil contra suas novas versões.
Como funcionam vacinas
Mas há outra forma de se proteger nestes casos. Podemos criar uma memória imunológica artificialmente por meio das vacinas. Elas contêm versões inertes ou pouco agressivas de vírus e bactérias ou apenas uma pequena parte desses microrganismos, que não nos deixam doentes, mas estimulam a produção de anticorpos específicos para aquela ameaça.
Se formos infectados por esse patógeno, o corpo é capaz de produzir mais rapidamente a quantidade de anticorpos necessários para neutraliza-lo antes que ele consiga se instalar no organismo.
No caso do novo coronavírus, explica Portela, ainda não está claro se uma única infecção é capaz de gerar uma memória imunológica.
"Pela forma como a epidemia está ocorrendo, parece que a pessoa adquire alguma imunidade, mas ainda não temos certeza disso. Por esse motivo, é importante desenvolver uma vacina para termos uma ferramenta eficiente de prevenção", diz o infectologista.
A tecnologia para isso avançou bastante nas últimas décadas. Hoje, é possível desenvolver vacinas ao identificar a estrutura genética de um patógeno e, com o auxílio de computadores, identificar as proteínas necessárias para criar anticorpos eficazes.
"Antes, levava anos. Agora, não é impossível fazer em questão de meses, mas, imaginamos que, no caso do novo coronavírus, levará ao menos um ano", afirma Portela.
Sistema imunológico saudável
Já se sabe na atual epidemia que o novo coronavírus costuma ser mais fulminante entre pacientes de mais idade.
Um estudo feito pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças da China, com base em dados coletados até 11 de fevereiro, apontou que, entre 44.672 casos confirmados, houve 1.023 mortes.
Isso significa que, até aquele momento, a taxa de mortalidade era de 2,3% na população em geral, mas o índice chegava a 3,6% entre pessoas com idades entre 60 e 69 anos, a 8% para quem tinha entra 70 e 79 anos e a 15% em pacientes com mais de 80 anos.
Isso ocorre em parte porque, a partir dos 60 anos, nosso sistema imunológico vai se desregulando, um fenômeno chamado imunossenescência, e perdemos progressivamente a capacidade de reagir da melhor forma a uma infecção.
Por causa dela, o corpo não consegue combater o invasor com a mesma eficácia, diz Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Também pode reagir de forma exagerada a um corpo estranho, o que faz mal ao nosso organismo.
"As células do sistema imunológico que deveriam apenas matar as células infectadas acabam atingindo também aquelas que estão sadias, provocando mais lesões", diz Spilki.
O sistema imunológico também pode ser prejudicado por doenças como o câncer e tratamentos usados para combater tumores. Pessoas que têm o vírus HIV, causador da Aids, também apresentam uma deficiência imunológica que as deixa mais vulneráveis a outras infecções quando essa condição não é tratada corretamente.
A ciência também já demonstrou que ter hábitos pouco saudáveis — dormir pouco, abusar de medicamentos, fumar, usar drogas, beber em excesso, não se exercitar ou se alimentar mal — também reduzem a imunidade, e há indícios de que o estresse tem o mesmo efeito.
"Tudo isso prejudica o equilíbrio do sistema imunológico, ao reduzir a absorção de nutrientes pelo organismo, acelerar a taxa de morte celular e reduzir a capacidade das células de reagir a uma ameaça", diz Astray.
A capacidade de criar uma resposta imunológica a uma ameaça é algo inato de um indivíduo, e existem pessoas que simplesmente têm um sistema imunológico mais forte do que outras.
No entanto, explica Portela, não existe uma fórmula para reforçar o sistema imunológico, dizem especialistas. Tomar vitaminas pode ajudar no combate a infecções por manter um equilíbrio de nutrientes no corpo, mas, por si só, elas não previnem doenças.
"Para ser mais resistente a infecções, não tem segredo. O mais importante é ter hábitos saudáveis e manter o cartão de vacinas atualizado."